sábado, 16 de julho de 2011

O Cravo não pode mais brigar com a Rosa

Chegamos ao limite da insanidade da onda do politicamente correto.
Soube dia desses que as crianças, nas creches e escolas, não cantam mais “O cravo brigou com a rosa”.

A explicação da professora do filho de um camarada foi comovente: a briga entre o cravo (o homem) e a rosa (a mulher) estimula a violência entre os casais.
Na nova letra "o cravo encontrou a rosa/debaixo de uma sacada/o cravo ficou feliz /e a rosa ficou encantada".
Que diabos é isso? O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha.
Será que esses doidos sabem que “O cravo brigou com a rosa” faz parte de uma suíte de 16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas recolhidos no folclore brasileiro?
É Villa Lobos, cacete!

Outra música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê.
Na versão da minha infância o negócio era o seguinte: Samba Lelê tá doente / Tá com a cabeça quebrada / Samba Lelê precisava / É de umas boas palmadas.
A palmada na bunda está proibida. Incita a violência contra a menina Lelê.
A tia do maternal agora ensina assim: “Samba Lelê tá doente / Com uma febre malvada / Assim que a febre passar / A Lelê vai estudar”.
Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar nunca.
Os amigos sabem de quem é Samba Lelê? Villa Lobos de novo.
Podiam até registrar a parceria.
Ficaria assim: Samba Lelê, melodia de Heitor Villa Lobos e letra da Tia Nilda do Jardim Escola Criança Feliz.

Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichanos.
A Sociedade Protetora dos Animais cairia em cima com processos. Quem entra na roda dança, nos dias atuais.

Não pode mais ter sete namorados para se casar com um.
Sete namorados é coisa de menina fácil, estimula o sexo sem amor, a vulgaridade.

Ninguém mais canta: “Pai Francisco entrou na roda, tocando seu violão, vem de lá Seu Delegado, e pai Francisco foi pra prisão”.
O pobre do Pai Francisco foi preso apenas por vadiagem, mas atualmente ficaria sob a suspeita de ser traficante.

Ninguém mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não lembrar à garotada a desigualdade de renda entre os homens.
Dia desses alguém [não me lembro exatamente quem se saiu com essa e não procurei a referência no meu babalorixá virtual, Pai Google da Aruanda] foi espinafrado porque disse que ecologia era, nos anos setenta, coisa de viado.
Qual é o problema da frase? Ecologia, de fato, era vista como coisa de viado.
Eu imagino se meu avô, com a alma de cangaceiro que possuía, soubesse que algum filho estava militando na causa da preservação do mico-leão-dourado, em defesa das bromélias ou coisa que o valha.
"Bicha louca", diria o velho.

Vivemos tempos de não me toques que eu magôo.
Quer dizer que ninguém mais pode usar a expressão "coisa de viado"?
Que me desculpem os paladinos da cartilha da correção, mas isso é uma tremenda babaquice.
O politicamente correto é a sepultura do humor, da criatividade, da divertida sacanagem.
A expressão coisa de viado não é, nem a pau (sem duplo sentido), ofensa a bicha alguma.

Hoje só podemos chamar o anão - o popular pintor de roda-pé ou leão-de-chácara de baile infantil - pessoa verticalmente prejudicada.

O crioulo - vulgo picolé de asfalto ou bola sete (depende do peso) - só pode ser chamado de afrodescendente.

O branquelo - o famoso branco azedo ou Omo total - é um cidadão caucasiano desprovido de pigmentação.

A mulher feia - aquela que nasceu pelo avesso, a soldado do quinto batalhão de artilharia pesada, também conhecida como o rascunho do mapa do inferno - é apenas a dona de um padrão divergente dos preceitos estéticos da contemporaneidade.

O gordo - outrora conhecido como rolha de poço, chupeta do Vesúvio, “Orca, a baleia assassina” e bujão - é o cidadão que está fora do peso ideal.

O magricela não pode ser chamado de morto-de-fome, pau-de-virar-tripa e Olívia Palito.

O careca não é mais o aeroporto de mosquito, tobogã de piolho e pouca telha. É desprovido de massa capilar.

Gago?  Nem pensar.  Trata-se de um repetidor sistemático de sílabas.

Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho. Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades especiais... Não dá.

O politicamente correto também gera a morte do apelido, essa tradição fabulosa do Brasil.

O recente Estatuto do Torcedor quer, com os olhos gordos na Copa e 2014, disciplinar as manifestações das torcidas de futebol.
Ao invés de mandar o juiz pra puta-que-o-pariu e o centroavante pereba tomar no olho-do-cu, cantaremos nas arquibancadas o allegro da Nona Sinfonia de Beethoven, entremeado pelo coro de “Jesus, Alegria dos Homens”, do velho Bach.
Falei em velho Bach e me lembrei de outra.

A velhice não existe mais.
O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado, o famoso pé-na-cova, aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do seguro-funeral, o popular tá-mais-pra-lá-do-que-pra-cá,  já tem motivos para sorrir na beira da sepultura.
A velhice agora é simplesmente a "melhor idade".
Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde. Defuntos? Não.
Seremos os inquilinos do condomínio Cidade do Pé-Junto.

Luiz Antônio Simas 
(Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor de História do ensino médio)

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